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Toxicomania E FamÍlia


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Há uma tendência que acredita na possibilidade de viver sem a história. É mais fácil crer que o momento presente inclua a totalidade do real, tornando menos complexo o raciocínio e a teoria. O sujeito singular vê-se, assim, mais seguro de si e dominador de seu ambiente. O sujeito da ciência, na sua fé cientificista, pode igualar as transformações do saber à evolução tecnológica e definir que a última novidade, a mais moderna, corresponde à síntese e à superação de todos os saberes precedentes, considerando-os mero obsoletismo ou peça a figurar em antiquários. Não é a posição deste escrito. A história é insubstituível para a iluminação do momento presente. E a história das drogas e da família é particularmente exemplar da importância do viés histórico. Mesmo que esta dimensão aproxime o risco de complexificação, que torna qualquer teoria uma mera parcialidade, e da relativização, que torna os saberes equivalentes. Diga-se de passagem que este texto é totalmente simpático à complexidade e ao relativismo.

 

E tanto a família quanto o uso de drogas têm passado por transformações, rápidas e surpreendentes. Comecemos pelas drogas.

 

Testemunhamos, no breve espaço de uma adolescência, o último período no qual as drogas pareciam um detalhe no interior de um grande relato: uma revolução no olhar sobre o Real, paz e amor, liberação sexual. Marx e Hendrix. E testemunhamos a transformação no uso das drogas. Não mais um detalhe no bojo de um relato, mas um fim em si mesmo. O uso simplesmente determinado pela busca de um efeito. Usualmente, um efeito de prazer hedonístico. Sem rito, sem cultura, sem espiritualidade. Se há uma importância no ato, esta limita-se à consecução do simples ganho de eficiência social, em um contexto de desencantamento do uso de drogas. Ao lado disso e, talvez, por isso, observa-se no espaço historicamente mínimo de 15 anos a um aumento notável de pessoas, jovens em sua maioria, hospitalizadas por uso de drogas que não o álcool. Quais as razões para esta transformação?

 

Cabe salientar que este cenário atinge mais nitidamente os grupos sociais urbanos, que vivem mais intensamente a organização possível originária do mercado de consumo. As palavras aqui escritas, a preocupação aqui revelada, não se aplicam, por exemplo, ao uso milenar e ritualístico que certas culturas conferem ao uso de drogas. E nem é crível imaginar que esta modalidade de uso, ao qual o termo utilização estaria melhor aposto, tenha alguma antecedência histórica ao uso ocidental, na cultura da ciência.

 

Não que faltem referências, mesmo na cultura da ciência, a esta modalidade de uso, referências embaladas pelo romantismo contracultural dos anos 60. Acreditava-se encontrar nas culturas indígenas um modo de relação sociocultural mais legítimo que a racionalidade moderna. Aí se inclui a viagem, literal, que Timothy Leary, professor de Psicologia clínica em Harvard, fez ao México e experimentou “a carne de Deus”, como os astecas chamavam o fungo que contém a psilocibina (1). A partir deste “encontro”, Leary torna-se reconhecidamente um dos animadores maiores da psicodelia que marcou o “flower power”, ao propor a seus alunos da prestigiosa universidade norte-americana o uso experimental do LSD. A contextualização universitária, experimental, colocando em uso uma droga produzida em laboratório farmacêutico marca a diferença com a tradição não ocidental do uso de drogas. O LSD tinha a marca da qualidade Sandoz e não propriedades divinas. Da mesma maneira, não é possível considerar o encontro do antropólogo Castañeda com o “bruxo” Dom Juan Martus uma ponte efetiva entre essas duas tradições. Capozoli (2) lembra, em matéria jornalística, uma entrevista de Castañeda onde este declara que Dom Juan “só usou drogas psicotrópicas durante o período médio de minha aprendizagem porque eu era extremamente estúpido, sofisticado e vaidoso...eu insistia em minha visão do mundo como a única verdade. Os psicotrópicos destruíram minha certeza dogmática, mas em troca eu paguei um alto preço; meu corpo ficou debilitado e precisei de muitos meses para recuperar-me. Sofria de ansiedade e funcionava em um nível muito baixo. Se tivesse me comportado como um guerreiro, aceitando a responsabilidade, não teria sido necessário tomá-las”. Esta declaração demonstra a condição extemporânea de Castañeda em relação ao saber de outra cultura e a dificuldade do antropólogo em assimilar uma verdade além da "certeza dogmática", certamente uma referência ao sistema racionalista de crenças onde foi constituído. Mas, em Leary e em Castañeda, mais o segundo que o primeiro, há uma dimensão associada às drogas psicoativas que supõe o sentido de busca e de encontro de um conhecimento. Um conhecimento curioso, decerto, produto da conjunção de uma substância com o corpo produzindo uma vivência da ordem da revelação. Algo similar pode ser lido na liturgia do Santo Daime e seus ramos, uma religião centrada na utilização da hoasca com marcantes características iniciáticas (Araújo,3).

 

Apesar da cultura ocidental acolher esse saber, e, claramente, a fala dos citados salientar a condição ritual obrigatória em associação ao uso das drogas, não é possível assimilar a particularidade discursiva de Leary, Castañeda e Mestre Irineu (o fundador do Daime) à função cultural que reveste a folha de coca entre os povos andinos. Taussig, citado por Zaluar (4), relata que os mineiros que trabalham nas minas de estanho “dizem...que, quando eles “achamama” (mastigam coca), ingerem o espírito dela (Pachamama, a mãe terra). Antes de entrar na mina, os mineiros a saúdam: “bom dia, velha senhora, não deixe nada me acontecer hoje”, quando saem agradecem a ela por estarem vivos”. Esta invocação de proteção é acompanhada do mascar da folha da coca. Esta atividade é absolutamente sancionada pelo Outro e se mantém inalterada há, certamente, séculos. Não produz nos outros nenhuma sensação de estranheza e excentricidade. É um fato de cultura e nada mais. Não caracteriza um discurso que define uma época, um subgrupo e o diferencia dos demais, como se dá com a psicodelia de Leary, a feitiçaria de Castañeda e a religiosidade de Mestre Irineu. Thorpe (5), referindo-se ao mesmo rito e comentando sobre a política de substituição das plantações proposta aos andinos, cita videntes do altiplano boliviano que teriam profetizado: “o homem branco ia encontrar um meio de corromper sua planta pequena mais forte; se seu opressor vier do norte, o conquistador branco, o caçador de ouro, quando ele a tomar vai encontrar só veneno para seu corpo e loucura para a mente”. Enfim, estes exemplos, sustentam esta proposição de que a tradição arcana do uso das drogas é significativamente distinta da ocidental. Além da sanção simbólica acima referida, aquela é definida pela abertura dos canais que ligam o mortal à divindade, a outra – a ocidental – é definida pelo sumir das dores indicando que o não sofrimento é possível na existência secular. Uma proposição em perfeita consonância com a ambição da ciência e claramente presente nos devaneios genômicos.

 

Neste sentido, se o discurso universitário funcionasse por completo, na cultura ocidental, a droga e seu uso seria apanágio da Medicina e um ramo da ciência aplicada. Os médicos, os responsáveis pela definição das circunstâncias em que as drogas poderiam ser usadas. E é interessante vê-las bailar entre as condições de remédio, veneno ou tintura, usando os termos recomendados por Coura (6). Como remédio, a droga se caracteriza por seus efeitos benéficos; como veneno, os efeitos prejudiciais é que são salientados; como tintura é um agente modificador do estado natural introduzindo características suplementares. Assim, o ópio, a cocaína, a morfina, a maconha freqüentam o discurso médico ora como remédio, ora como veneno, ora como tintura. Algo absolutamente igual se dá com as drogas que, no jargão atual, são reconhecidas como de uso exclusivamente médico. Basta ler a prosaica bula e assustar-se com os “efeitos colaterais” e ouvir as discussões sobre se a fluoxetina realmente corrige uma presuntiva diminuição prévia da produção neuronal de serotonina ou se simplesmente, ao estilo das tinturas, introduz uma novidade bioquímica com conseqüências psíquicas. Fica para outra hora esta conversa.

 

O primeiro momento, na cultura ocidental, no qual as drogas mostraram alguma proeminência foi no século XIX. Escritores tais como Gaurier, Rimbaud, Baudelaire reuniam-se no “Clube do Haxixe”, dedicando-se a experimentar e descrever e os efeitos particulares das drogas, destacando a competição destas com o saber da cognição. Baudelaire (7) expõe com clareza essa competição de vivências. Diz do efeito do haxixe: “as cores tomarão uma energia insólita e entrarão no cérebro com uma intensidade vitoriosa. Delicadas, medíocres, ou até ruins, as pinturas dos tetos assumirão uma vida assustadora...”; “a gramática, até a árida gramática torna-se algo como uma bruxaria evocatória, as palavras ressuscitam vestidas de carne e osso...”. Apesar de Baudelaire fazer referência ao “kief” oriental, alinhando a experiência psicotrópica a outra cultura, predomina em seu discurso a surpresa e o interesse que o encontro com o haxixe traz para a existência ordinária. O efeito psíquico é visto como um “plus” e não, como entre os andinos, uma conversa com a dimensão mágica, precedente ao caminhar humano pelo planeta.

 

Entretanto, os cento e poucos anos que separam o clube do Haxixe com a geração pós Segunda grande guerra não são suficientes para diferenciá-los de maneira decisiva. Ainda durante os anos 50, pequenos grupos passaram a caracterizar-se pelo uso de drogas. Pelo menos um desses grupos manteve o mesmo traço encontrado no século XIX: a mescla da marginalidade com a produção artística. A geração “beat” – Kerouac, Burroughs, Bukowsky, Ginsberg, Ferlinghetti, Corso – trocavam textos, romances, poemas, mulheres, homens e drogas: álcool, heroína, yagé, remédios. Outros grupos, contemporâneos da geração “beat”, mas fascinados por drogas distintas – preferencialmente, os alucinógenos – também estavam em atividade. Houve Hollingshead e o Centro Mundial Psicodélico, Leary e a Fundação Castalia, Trocchi e o Projeto Sigma. Instituições dedicadas a documentar as experiências alucinógenas (8). O Projeto Sigma, fundado por Trocchi, era um meio para tomar de assalto o mundo pela destruição da alienação. O Projeto deveria “providenciar a motivação e os meios para uma “revolução meta-categorial”, para a “Invisível Insurreição de um milhão de mentes”, para a “Universidade Espontânea”, para a “Copa do Mundo”.

 

Daí a popularização das drogas.

 

De início, como anteriormente comentado, apesar das diferenças notáveis com as comunidades indígenas, o uso de drogas esteve envolvido por um relato que o justificava e o colocava como um meio. As drogas tiveram popularidade, eram cantadas em sucessos musicais (Purple haze, Lucy in the sky, The pusher), mas se discutia o efeito delas na criação artística (9), na liberação do inconsciente em psicoterapias (10), além de colocar em questão os pilares da cultura ocidental pela via da expansão da consciência e pela suposição de que a realidade poderia ser outra.. Esta perspectiva – seio do movimento contracultural – logo desapareceu.

 

Os anos 60 terminaram – the dream is over – e a década de 70 trouxe novos e inquietantes ventos para a questão das drogas. O caráter amadorístico, romântico e artesanal que caracterizava o “flower power” foi substituído por uma perspectiva na qual “a criminalidade moderna e empresarial...é organizada segundo os princípios do mercado e da defesa dos interesses econômicos do grupo que controla o empreendimento...” (4). A cena drogadíctica recebeu, então, a indelével marca do crime organizado. Castro (11) assim se exprime: “De lá para cá (1975), como talvez fosse inevitável, essas elites que julgavam dominar o processo perderam o controle. Os traficantes expandiram-se, a droga atingiu todas as camadas e desmoralizou a aura que se lhe atribuía, de “expandir a consciência” ou de “contribuir para a criação” – hoje só os pascácios acreditam nisso”. A droga tornou-se um produto a ser comercializado quanto qualquer outro, o tráfico uma empresa como qualquer outra, traficar uma profissão mais rentável que o salário mínimo.

 

Enfim, são as pontuações históricas interessantes de levar em conta. Há um momento, distante da tradição ocidental, que as substâncias identificadas como “drogas” pelo discurso farmacológico, seguem trilhas em direção ao encontro e ao diálogo com os deuses. Os vegetais, espalhados pela natureza, são nada mais que as marcas da divindade no planeta senão partes de seu próprio corpo, caprichosamente deixadas para trás. Um outro momento, inserido no Ocidente, as drogas foram assimiladas por grupos restritos que julgavam encontrar nelas um experiência inusual. E dois momentos decorrentes de sua popularização: a contracultura e o período atual. A diferença entre esses dois momentos é o invólucro ideológico do primeiro, onde o uso das drogas foi vinculado a um discurso libertário, e a absoluta ausência de propósito e de palavra no segundo. Neste, a generalização do uso é operado por grandes corporações criminais, com relações tão evidentes quanto obscurecidas com a economia formal. A profissionalização do cultivo, da produção, da distribuição é, certamente, um dos elementos que configurou a maneira como se usa drogas atualmente. Um outro fator é a cientifização do cotidiano que a atmosfera pós-moderna traz à subjetividade. Uma noção de ciência menos iluminista, calcada exclusivamente em conceitos e promessas como aumento de potência, eficácia e otimização da performance de um dado sistema (Barbosa, 12), sem nenhuma representação que signifique fixação a algum padrão que suponha esperança e culpa. Como se expressa Bauman (13) a este respeito: “A ação humana não se torna menos errática: é o mundo em que ela tenta inscrever-se e pelo qual procura orientar-se que parece ter-se tornado mais assim”. Os objetos não são mais duráveis, os relacionamentos não são mais compromissos e o que conta e vale é a habilidade de permanecer em movimento e toda a demora à satisfação não tem mais sentido. Assim continua Bauman (13): “E desse modo a dificuldade já não é descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo...O eixo da estratégia pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe”.

 

A essa conjugação de fatores deve-se o atual cenário toxicomaníaco. A ausência estrutural, no ser, de plenitude felicíssima deixa-o aberto e desejante. As respostas atenuantes pareciam vir da possibilidade de pagar o preço por construir um projeto, uma revolução, uma responsabilidade, um nome. Esta é a possibilidade que se esvai. O toxicômano, bem nutrido por um esquema profissional de cultivo, produção e distribuição, mostra-se talvez, quem melhor representa a pós-modernidade. Pois ele vivencia com toda clareza a mutabilidade dos objetos, das sensações, da identidade, da realidade. Basta a ingestão de determinadas substâncias às quais acede até pela Internet. Se algo der errado, apenas a palavra do futuro dirá. E o futuro é muito, muito, muito distante na subjetividade do adicto.

 

Como se vê, salvo nos excessos biologistas que a era genômica permite, o uso de drogas não pode ser deduzido exclusivamente da configuração singular de um ser. Seja a configuração genética, seja a configuração do aparelho psíquico. O uso de drogas é também o resultado do momento cultural que a humanidade atravessa.

 

Algo similar se dá com a noção de família. Suas características, sua importância muda com a organização cultural humana. E da mesma forma do que houve com as drogas, os últimos 15 a 20 anos têm sido palco de transformações fundamentais na estrutura da família e na sua função cultural.

 

Se, nas comunidades primitivas, a comunidade praticamente toma para si a responsabilidade da criação e da inserção da criança no grupo e sua pertinência familiar é importante tão somente como um operador das permissões e proibições ao casamento, a tradição ocidental é que elevou a família a esse núcleo mais ou menos fechado, organizado em torno do pai como representante da autoridade. A família, então, “prevalece na primeira educação, na repressão aos instintos, na aquisição da língua justamente chamada materna. Por isso ela preside aos processos fundamentais do desenvolvimento psíquico..., ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência”, como se expressa o psicanalista Lacan (14). Referências distintas da Psicanálise, permitem uma similaridade que vale a pena ser ressaltada. Sluzki (15) define a família como “um conjunto em interação, organizado de maneira estável e limitada, em função de necessidades básicas, com uma história e um código próprios que outorgam singularidade; um sistema cujas qualidades emergentes excedem a soma das individualidades que a constituem para adquirir características que lhe são específicas”. Ressalte-se, então, o seguinte ponto: há algo no seio da família que vai além de qualquer cálculo, de qualquer vontade de domínio. É como se a função de “intermediação entre o indivíduo e o Estado, entre o egoísmo e o sentido de Estado”, como diz Marcuse(16) a respeito da noção hegeliana de família, fosse atravessada por uma nódoa de indeterminação. Que Lacan expressa como o que “ultrapassa os limites da consciência” e Sluzki como a propriedade emergente que “excede a soma das individualidades que a constituem”. Esta pontuação serve para frisar que, mesmo nas famílias bem constituídas, algo escapa à boa ou à má vontade dos sujeitos familiares. Não obstante, a nódoa de indeterminação não anula a função civilizadora que a família pode desempenhar. Simplesmente alerta que se um de seus membros desvia-se para as drogas, por exemplo, não é plenamente possível deduzir este desvio dos atos concretos de cada um dos familiares. Apesar de identificar a família a uma potência, seja a perspectiva que orienta um desejo que repousa no coração e mente do nosso cotidiano. Casar-se e constituir família ainda é tido como um passo “sério” que homens e mulheres dão em suas vidas. Esta “seriedade’ é herdeira da importância que a família, historicamente, tem para a construção de novos cidadãos.

 

Entretanto, contemporaneamente, esta perspectiva tem sido bombardeada por todos os lados. A família de lugar privilegiado pelo bem e pela ética, de lugar consistente para a construção do caráter, como o discurso clássico a apresenta, vem se transformando em pouco mais que uma nulidade obsoleta, quando não o lugar onde o mal é cuidadosamente talhado. Mal talhado senão no cadinho feiticeiro da herança genética, na relação repressora que necessariamente se estabelece nas famílias. Ainda nos anos 50, Adorno e Horkheimer (17) deduzem “de um ordenamento global determinado pela troca e, por conseguinte, pela racionalidade individual das pessoas singulares em seu trabalho” a diminuição da eficiência familiar “por causa do fato de a família não mais garantir de modo seguro a vida material de seus membros e não poder proteger suficientemente o indivíduo contra o mundo exterior que pressiona de modo cada vez mais inexorável” (17). Os autores alemães põe em relevo a relação entre a estrutura e a função da família em um Estado marcado pelo estilo capitalista, onde as respostas individuais são mais eficazes que o respeito ao grupo.

 

Nos anos 60, alguns pensadores chegaram a considerar a família uma “pseudo-realidade” (18) que limita-se exclusivamente do “condicionamento ideológico... uma engrenagem social encarregada de reforçar o poder real da classe dominante numa sociedade que tem seus alicerces na exploração”(18). Esta foi a posição esposada pela contracultura e seu ramo anti-psiquiátrico. A família o lugar do mal, o lugar da segregação, da construção do anonimato e da submissão a um Estado essencialmente explorador.

 

Ao lado dessa visão que objetivava a superação da estrutura familiar, uma conjunção de fatores, na esteira da queda da importância da família, que incluíram a manipulação do ritmo natural do cio feminino e o relaxamento da pressão social sobre os costumes sexuais trouxeram conseqüências. A principal delas, decerto, é o deslocamento da função da mulher na cultura. Esta deixou de restringir-se às atividades sexual, reprodutiva e socializadora de crianças, isto é, dissipou-se a figura de uma mulher voltada exclusivamente para as funções domésticas. A mulher foi ao mundo da produção e do trabalho em todas as suas nuances. Liberou-se a relação pré-conjugal e o casamento perdeu outro privilégio: o do encontro sexual esperado.

 

Essa trama complexa de transformações na relação do sujeito ao mundo não passou incólume. Aquilo que orientava a geração precedente esmaeceu-se. A ciência e a tecnologia colaboraram para que as orientações éticas fossem mudando. Estas pouco a pouco foram permitindo menos compromisso com a pólis e maior dimensão às decisões individuais. E o laço determinado pelo casamento e, portanto, da família foi bastante afrouxado. Assim, o caráter indissolúvel deste laço no qual “o essencial era que não se voltasse atrás com a palavra. Os projetos, as alianças, os investimentos não podiam ser modificados, nem muito freqüentemente, nem muito cedo ... A stabilitas aparecia então como condição da stabilitas da comunidade. Esta devia velar para que ela fosse rigorosamente respeitada” (Ariès, 19). É exatamente esta simbiose entre as estabilidades da família e da comunidade que, ao correr do tempo, foi minada pelas transformações culturais. Os casamentos, atualmente, mesmo os festejados com toda pompa, circunstância e lei, assimilam-se à caracterização que Béjin (20) conferiu aos casamentos extraconjugais: “uma negociação que é feita dia a dia pelos companheiros. Assim, sem o nexo que reunia a estabilidade do casamento à comunidade, reconhece-se que cada um dos companheiros interrompa o laço a qualquer momento. Complicações jurídicas, divisão vantajosas para ambos do patrimônio, preocupação com os filhos são elementos mais decisivos para a desunião que o caráter comunitário – tão importante outrora – da aliança.

 

O exposto até aqui não é pouco. No entanto, há mais a colocar a importância da família no chão. Além da perspectiva proposta pelo ordenamento global determinado pela troca e pelo consumo, além da liberação sexual passo a passo com o deslocamento da mulher do doméstico para o público, além do afrouxamento do laço do casamento com a comunidade, os cientistas e a ciência – os produtores do saber sancionado pela cultura presente – têm exposto em obras dirigidas aos leigos que estamos no umbral da mais fantástica das novidades. Silver, um biólogo molecular, diz “nas páginas que se seguem, vou explicar como os avanços notáveis na ciência e tecnologia nos obrigam a reconsiderar noções arraigadas de maternidade e paternidade, infância e o significado da própria vida” (21). E, seguindo o trajeto já marcado pelas transformações culturais, é a posição da mulher a operadora das novidades. No mundo antigo, Aristóteles teria dito que pelo fato da mulher não produzir esperma “faz com que metade da humanidade seja formada por eunucos, incapazes de transmitir a geração, de reproduzir, a não ser emprestando o lugar no qual se desenvolve o esperma fecundante do macho” (Rousselle, 22). No presente, o biólogo molecular segue na antecipação de seu admirável novo mundo, dizendo: “biologicamente falando, a única coisa que uma mulher precisa hoje é de um homem disposto a participar do ato sexual ou a fornecer espermatozóides para a inseminação artificial. Se ela desejar uma fonte anônima de material genético, pode ir a um banco de esperma. No futuro, quando a clonagem se tornar comum, não haverá necessidade de nenhum homem”(21). Os eunucos da pós-modernidade, os desnecessários para a transmissão da geração, são, sob a luz da ciência, os homens.

 

Assim, qualquer pensamento sobre as drogas e a família, qualquer programa de atendimento de famílias aonde um toxicômano, um drogadicto, um dependente químico, tenha surgido deve levar em conta esta nova perspectiva. Pelo lados das drogas, a busca do êxtase está à mão e não há um discurso que possa oferecer obstáculo a este movimento, a não ser a referência, sempre distante, ao cuidado com o corpo. Pelo lado da família, observa-se o poder de influência e de mediação, a esperança na autoridade paterna, o compromisso com o outro, o empenho da palavra, tão vivos no espírito, minguando.

 

Veremos o que o futuro dirá. E o futuro não mais a Deus pertence.

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia:

 

1. Leary, T. (1977) “LSD es aire”. In Hanning, P. (org). El club del haschichin – La droga en la literatura. Barcelona, Taurus.

 

2. Capozoli. U. (1998) Mistério sobre Castañeda continua após sua morte. “O Estado de São Paulo”, 10/10/98.

 

3. Araújo, W.S. (1999) Navegando sobre as ondas do Daime. História, cosmologia e ritual da Barquinha. Editora da Unicamp, Campinas.

 

4. Zaluar, A. (1999) A criminalização das drogas e o reencantamento do mal. In Zaluar, A. (org). Drogas e cidadania. Repressão ou redução de riscos. Brasiliense, São Paulo.

 

5. Thorpe, N. (2000) Bolívia teme “genocídio cultural” na guerra da coca. “O Estado de São Paulo”, 10/09/00.

 

6. Coura, R. (1998) A drugstore de Platão (os psicofármacos). Texto inédito, apresentado no 1º Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise”, ocorrido no Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.

 

7. Baudelaire, C. (1996) O comedor de ópio/O poema do haxixe. Newton Compton Brasil, Rio de Janeiro.

 

8. Wilson, A. (1997) Trocchi on drugs. In Melechi A. (org). Psychedelia Britannica. Hallucinogenic drugs in Britain. Turnaround, Londres.

 

9. Barron, F.; Jarvik, M.E.; Bunnel JR, S. (1973) As drogas alucinógenas. In. Hardin, G. (org). A ciência social num mundo em crise (textos do Scientific American). Perspectiva/EDUSP, São Paulo.

 

10. Sandison, R. (1997) LSD therapy: A retospective. In. Melechi, A. (org). Psychedelia Britannica. Hallucinogenic drugs in Britain. Turnaround, Londres.

 

11. Castro, R. (1998) No tempo em que a droga parecia risonha e franca. “O Estado de São Paulo”, 16/05/98.

 

12. Barbosa, W.V. (1997) Tempos pós-modernos. Introdução a “A condição pós moderna”, Lyotard, J.F. José Olympio Editora, Rio de Janeiro.

 

13. Bauman, Z. (1997) Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade. Em: O mal-estar da pós-modernidade. Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro.

 

14. Lacan, J. (1981) A família. Assíro e Alvim, Lisboa.

 

15. Sluzski, CE. (1977) Familia. Em: Enciclopedia de Psiquiatría. Organização: G. Vidal, H. Bleichmar, RJ. Usandivaras. El Ateneo, Buenos Aires.

 

16. Marcuse, H. (1981) Hegel e a família. Em: Dialética da família. Organização M. Cannevacci. Editora Brasiliense, São Paulo.

 

17. Adorno, Th.; Horkheimer, M. (1981) Sociologia da família. Em: Dialética da família. Organização: M. Cannevacci. Editora Brasiliense, São Paulo.

 

18. Bosseur, C. (1976) Introdução à anti-psiquiatria. Zahar Editores, Rio de Janeiro.

 

19. Ariès, P. (1983) O casamento indissolúvel. Em: Sexualidades ocidentais. Organização: P. Ariès e A. Béjin. Contexto, Editora, LDA, Lisboa.

 

20. Béjin, A. (1983) O casamento extraconjugal de hoje. Em: Sexualidades ocidentais. Organização: P. Ariès e A. Béjin. Contexto, Editora, LDA, Lisboa.

 

21. Silver, LM. (2001) De volta ao Éden. Editora Mercuryo, São Paulo.

 

22. Rousselle, A. (1984) Pornéia. Editora Brasileinse, São Paulo.

 

 

DURVAL MAZZEI NOGUEIRA FILHO . TOXICOMANIA E FAMÍLIA: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS [online]

Disponível na internet via WWW URL: http://www.educacaoonline.pro.br/toxicomania_e_familia.asp

Capturado em 18/04/2005 09:11:32

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Muito interessante o texto! É grande mas vale a pena. Só falhou um bocadinho por ter exposto muitos factos e não ter aprofundado mais a relação da toxicodependencia na familia. Mas gostei.

Obrigado Uber.

A única certeza que tenho é não ter certezas.

"... e no fundo isto é tudo uma grande brincadeira!"

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Excelente... vim cá ter assim meio à sorte. Por acaso parece-me uma visão aproximada da minha, muito bem explicada e fundamentada.

 

(uber, tinha escrito umas linhas... mas perdi-me a meio... tou todo cego... sorry)

Um dia ia eu na floresta, e apareces tu! Resolvi dar-te uma prenda...

E que rica prenda!

 

In the 60's people took acid to make the world weird.

Now the world is weird and people take prozac to make it normal.

 

Vamos todos tomar o ácido às 23:59 e não se esqueçam dos toalhetes húmidos para limpar as mãos depois dos camarões.

 

Ignorando activamente: 9 users!

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